quarta-feira, 4 de junho de 2025

O cérebro não faz copy/paste

Em minha casa sempre se leu muito. 

Só havia 2 canais e a “Dois” abria tarde. (Sim, “abria”. Não havia canais sempre a dar!!! Estava ali parada aquela grelha com um círculo ao centro, linhas horizontais e verticais, quadradinhos e retangulozinhos a preto e branco e outros a cores...mira técnica, agora sei! E depois chegava àquela hora e...”abria”. Tal como se fechavam. Os canais, na hora de encerrar a emissão, lançavam a bandeira nacional ao vento e ao som do hino levantávamos o rabinho e íamos desligar o televisor. “Boa noite, até amanhã se Deus quiser...” ) 

Desenhos animados tinham horas marcadas e, ao fim-de-semana, só passavam ao sábado de manhã. Vasco Granja, my man, o fornecedor de psicadelismo infantil global. Ao domingo de manhã, o alinhamento roubava-nos a diversão e quem estivesse “a morrer, Mãe! Acho que estou doente, não me sinto nada bem…não consigo ir à Missa!”, vinha a montanha a Maomé na RTP 1. Sagradinho: TV Rural (aprendi tudo sobre o flagelo do míldio, o escaravelho da batata e técnicas de resinagem), 70X7 (um secadão que até hoje nem sei o que abordava) e a Eucaristia Dominical. Com direito a tudo menos à hóstia! 

Os meus pais haviam regressado à Pátria, vindos de Luanda, para que as filhas tivessem acesso ao ensino em Portugal e as malas que rebentavam pelas costuras vergavam sob o peso da Literatura e de pouco mais. Lá em casa lia-se bué! Ainda antes de “bué” entrar no léxico luso de uso corrente. Eram machimbombos de livros, enciclopédias, capas duras, encadernações de bolso, eram coisas sérias, coisas sexuais, românticas, ficcionais, biográficas, históricas, técnicas, autores muitíssimo consagrados, autores menos conhecidos, de todas as partes do Mundo, autores traduzidos, gente que nunca havia sequer sido publicada cá. Livros, livros, livros…em português de Portugal e do Brasil. E é aqui que a porca torce o caracol da bundinha: tínhamos acesso a tudo, quer dizer, quase tudo… Havia um grupo de livros sobre sexualidade dividido em grupos etários. A mim e à mana era-nos dado a conhecer (e bem!) cada coisa a seu tempo. Dos 6 aos 12 podíamos ficar a saber tudo sobre abelhas e passarinhos. Passarinhas, ainda pouco. Dos 13 aos 15 já havia direito aos pelos púbicos e um pirilauzito, e por aí em diante…




Os nossos pais vinham de uma mentalidade um pedação mais à frente da que se praticava em Portugal. Luanda fervilhava de la movida, últimas modas, carros e motas, Coca-cola e baleizões, Cuca e jinguba (e quando esta última era preparada com açúcar e servida com a dita cerveja, renomeava-se de “ParaCuca”, genial não é?)

Eram bem putos os nossos pais…mas tinham muita bagagem. Para eles o acesso à leitura não era sequer assunto. Os livros existem para ser lidos. A porca torce então o proverbial rabo quando a minha mãe é chamada à escola, andava eu na 2ª classe. 

A D. Rosalina estava chocada com as minhas falhas gritantes aquando da conjugação de verbos! “Se calhar é de andar a ver as telenovelas brasileiras! Tanto gerúndio, gerúndio a mais…”; andava fazendo conjugações bizarras. É, era português do Brasil mesmo. Mas não era das telenovelas. A culpa era do Jorge Amado, mas quase toda do José Mauro de Vasconcelos.


Li vários livros dele, mas claro que o que se enraizou foi “Meu Pé de Laranja Lima”. Capa fundo azul. O Zezé desenhado a traços, calções pretos, camisa branquinha e laçarote ao pescoço. O pássaro que esvoaça. Céus! Fui googlar e no retorno da lupa em Imagens, eis que essa ilustração preenche a tela na totalidade! 

Na época, li-o de uma assentada. Numa tarde. Não me lembro em concreto por que tive aquele dia livre. Recordo-me de um passeio da escola ao qual não fui, nem sei porquê. Li-o de fio a pavio. Se entendi tudo o que li? Não. Categoricamente, não. Retive só coisas lindas, aventuras, palavras novas, o arrojo das personagens, o cheiro das coisas, a imponência de um carro, que era possível uma criança ser “endiabrada”, ter “o diabo no corpo”…e o que me fascinou e retive foi o Zezé aprender tudo sozinho, até a ler! 


Li-o outra vez. Tinha tido acesso ao volume 13-16 da enciclopédia sexual. Agora, nesta 2ª leitura eu já era adolescente. Entendi mais. Entendi muito mas ainda não tudo. Ficou-me, do enredo, a força daquela mãe que arregaçava as mangas e ia tratar de vida. Um pai frustrado, bêbedo e violência. Li-o pela terceira e última vez em adulta e fiz merda. Da grossa.

Recordava-me das travessuras do Zezé, da amizade com um adulto, havia tragédia, acho que morte também. As agruras da vida adulta…memórias literárias ténues. Afinal, entre a leitora adolescente e aquela adulta, corria um rio com mais de 25 anos de largura entre margens. E havia aquele perímetro…Do meu umbigo para a direita, em todo o meu redor até ao lado esquerdo do mesmo umbigo. O raio desta circunferência trespassava uma vida ainda pequenina. A leitora adulta decidiu que era bem giro ler “O meu Pé de Laranja Lima”, grávida. É,... fiz merdinha da grossa. 

De repente caem fichas atrás de fichas: era o Zezé aos 5 anos a ser feliz e a ter uma vida estável. A ser travesso, mas astuto e engraçado. É um pai que perde o emprego, entra numa espiral de desespero, entrega-se à depressão, à bebida, à violência…Um lar que desmorona, rachas por todo o lado. Abuso e negligência infantil, é o que leio agora. Os problemas dos adultos a espezinharem um universo criativo e brilhante. Abandono. Uma árvore confidente das amarguras de um menino que ama demais, que cresce demais, que domina o quintal, que tem de ser cortada! Desbasta-se o Minguinho e com isso arranca-se o escalpe à alegria, aos sonhos, ao ser criança. “Até bem pouco tempo ninguém me batia. Mas depois descobriram as coisas e vivem dizendo que eu era o cão, que eu era capeta, gato ruço de mau pelo.”




Tudo isto quis deixar registado para memória futura porque hoje, à data, os 2 filhos que tenho têm 14 e (quase) 10 anos. Ele e ela respetivamente. 

Li para eles muito, sempre. Desde o ano 0 de cada um. Em todos os lugares: na cama (óbvio), ao ar livre, baixinho na Biblioteca, li placas de sítios, descrições nos paredes de museus, li livros de plástico, fofinhos, que boiavam na banheira!... E agora leio pontualmente porque cada um já lê para si, onde, quando e se lhe apetecer, maaaaaaaas....................há dias, a mais nova repara e nota que um livro que havia lido quando era pequenina interpretou de uma forma e agora, que releu, “viu” outras coisas. E foi quando bastou para abrir aquela caixa de Pandora. 

O cérebro é tão engraçado. Claro que nesta equação há maturidade emocional, experiência de vida e outras químicas à mistura, mas pergunto-me se não será igualmente auto-preservação. As coisas estão lá, escritas nos livros, ditas nos filmes, e se não sabemos, vamos perguntar (nem que seja à IA)

Ler e escolher perceber aquilo e mais nada será de alguma forma uma maneira que o cérebro encontra de dizer “deixa estar. Entende assim, hás de voltar aqui”? Não sei. 

A ignorância é uma bênção. Detesto este ditado. Saber é que é uma bênção! 

...mas, prefiro a versão que li antes da “Dois” abrir...

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Eu preciso...no Metro do Porto

 

No metro, com um podcast de true crime enfiado nos orifícios auriculares, abstraio-me. É true crime, por isso estou em paz, serena, focadérrima. Fecho os olhos para absorver cada sonzinho afiado e sombrio, cada inflexão da voz do narrador, num british english sensualão.

Estou ali há 5 segundos com as cortinas corridas para o mundo que balanceia acima da linha do solo neste metro “de superfície”.

Atravessando o espesso casaco fofo, verde musgo, um blusão de ganga e uma blusa preta que escolhi apressadamente, sinto diretamente na pele um aperto no braço...ato contínuo, ainda sem abrir os olhos, giro o ombro em direção ao bolso de trás das calças para sacar do passe e confirmar a validação da viagem no dispositivo móvel do “pica” que não pica, faz bip. Não era o revisor. Recolhi a mão e fitei. Estava olho com olho. Receei conjuntivite, porque sou achacada a essas coisas.

- Esta noite – sussurrou a mulher de longos cabelos negros inclinada sobre mim, ela, e o decote que me esforcei por evitar mas já não consegui... – esta noite (repetiu), reze dois Pai Nossos e uma Avé Maria antes de dormir. Ouviu?

Ouvi, mas só consegui anuir com a cabeça porque ainda estava a tirar os buds dos ouvidos.

- Eu estava ali a olhar para si, e... – mão esquerda dela no meu peito, graças a Deus entre o ombro e a mama, e graças às camadas de roupa, também!... – eu sou vidente, eu sei estas coisas. Você precisa. Eu sou vidente.

Agradeci. Não disse que fazia, mas agradeci.

Retirou a mão. Ah, não retirou...levantou e voltou a poisar. Mais duas pancadinhas na fofura do meu casacão.

- Você precisa...

- Obrigada. – respondi. Saúde! (foi a única coisa que me saiu. Desejei-lhe a física e a mental)

E sai a criatura naquela paragem.

Primeiro pensamento: “Fod#-se, estas coisas, só a mim.”

Segundo pensamento: “Ainda tenho o relógio no pulso?”

Terceiro pensamento: “Que caras faço eu quando fecho os olhos para ouvir podcasts?!”

Quarto pensamento: “Eram duas Avé Marias e um Pai Nosso ou dois Pai Nossos e uma Avé Maria?”

Quinto pensamento: “...se forem dois, o plural é em “pais” ou em “nossos”?”

Raisparta.

Só a mim...

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Grela que é Batata



Sabemos tão pouco sobre algumas coisas…

Dei por mim a constatar o que para alguns pode ser óbvio mas que para mim foi uma revelação: não é bom saber-se muito sobre uma coisa. É genial saber alguma coisa sobre muitas coisas! (e aqui me vingo da D. Rosalina, professora primária, que nunca nos deixava usar a palavra “coisa” – ah como é bom ser adulto, seguido de um deitar a língua de fora)

Prossigo: acabei de ler esta crónica de Miguel Esteves Cardoso, no Público. E senti-me reduzida à minha insignificância no que toca a conhecimento sobre as variedades de batata. Assim, curto e grosso: eu, não conheço.

Sou a que pede “que seja boa para cozer”, “que não se desfaça”, “que seja boa para puré” e raramente (porque detesto cheiro a fritos) “que fique bem fritinha”.

Ocasionalmente quem atende sabe indicar mas desconfio logo quando dizem:
- São todas muito boas, menina!

Não, não são. Quase sempre são más em diversos aspetos: sabem a mofo, estão tocadas, pretas por dentro, cheiram mal… E isto é tão recorrente que quando são efetivamente boas sentimos a irresistível vontade de o apregoar:

- Isto sim, é que é batata! Já nem me lembrava de comer batata assim tão boa!

Por reconhecer que sou ignorante e por querer elevar o meu conhecimento sobre o supino tubérculo, fui investigar. E como sou como a canalha, fui ali fazer umas rimas para nunca mais me esquecer.
E este é o contributo, o legado que deixo à Humanidade: eis algumas variedades de batata cultivadas em Portugal, como são e para que servem. E, deixem estar. Não precisam de agradecer.


Para começar é simples, só há uma espécie no Mundo
Solanum tuberosum, diz-se em Hogwarts em latim profundo

 Uma espécie que se divide e nos traz em variedade
Tantas outras batatas para comer em qualquer idade

“O tubérculo produz-se todo o ano”
- disse-me um fulano

As de abril são Primor - ”prazer e muito gosto!”
As outras, Conservação e são de julho/agosto

Asterix é vermelha, excelente para fritar
Tens a Agria, amarela, com ótimo paladar

Manda vir também Vivaldi, de pele amarela clara
Há ainda Monalisa, pele regular, clara e lisa

E que cómico que é, um compor as 4 Estações
E a outra, com o sorriso, quebrar corações




Foto: modernfarmer.com

sexta-feira, 28 de março de 2014

A insustentável leveza da flatulência

Saiu mais um estudo. 

Daqueles assinados por pesquisadores internacionais de uma universidade num lugar qualquer que comece por W ou H e que vem descrito numa publicação muito importante e de renome. Para o caso, a BBC online. Os pesquisadores são britânicos e a universidade é com M de Manchester. 

O estudo interessa-me, muito. É dos que me interessam porque validam e atestam a certeza suprema de que há explicação para a minha incompreendida forma de ver as coisas...

“Ouvir vozes pode ser normal, diz estudo” – aqui abdicava do pode ser que já estraga a certeza...

Antes de continuar a divagar, aviso já. Não padeço de condição paranormal, mediúnica, esquizofrénica ou traumática. Oiço e dou-lhe ouvidos por ser a minha mesmo. E a minha é só diversão! Ao ponto de me engasgar em gargalhadas internas enquanto mantenho firme o semblante impávido e mais ou menos sereno (que estas coisas vão-se adquirindo com a experiência).

É que é todo o santo dia! A todas as horas, em qualquer lugar, situação, com o interlocutor que for. Tenho um comediante a fazer stand up na minha cabeça 24 sobre 24, até desconfio que me assalta os sonhos, tantas são as vezes que acordo com uma gargalhada minha!

No elevador, entro sozinha, paira o fedor a flato do utilizador anterior. Chego ao rés do chão e estão para entrar dois rapazes, não sendo miúdos não chegavam a ser homens. Logo em microsegundos avalio se vão comentar, rir, olhar de forma reprovadora, se travam ou entram e se é lá dentro que comentam em voz suficientemente alta que os consiga ouvir. Cenários possíveis:

Comentar – “Bem, meu! Que cheirete!”

Rir – “Ahahahahaha”

Olhar de forma reprovadora em cujos olhares posso ler –“Que badalhoca!”

Comentar dentro do elevador – “F***-se. Produzem-se e pintam-se todas mas não são capazes de aguentar e apertar no elevador. Aposto que nem o desceu à corda, deve ter sido à bomba atómica!”

E isto está tudo a acontecer enquanto desço quatro andares tentando ignorar o vómito por ter percebido que respirar pela boca afinal não é boa ideia!

Claro que o elevador chega aos rés do chão e estava lá mesmo alguém e no turbilhão dos pensamentos e cenários nunca me ocorreu que se saísse apenas com um Bom dia e fizesse de conta que não se passava nada, acabava com a história, com a vergonha passiva por não ter sido eu, e levava o resto do dia sem perder mais um pensamento que fosse com o acontecido. Mas isso, não seria eu. 

Plim, abrem-se as portas. Contacto visual intenso, não saio, fico feita ladrão apanhado com a mão na caixa das esmolas, coro, abro bem os braços e:

- “Isto é uma vergonha! Está aqui dentro um cheiro que não se aguenta! Se fosse a si, chamava o outro elevador!”


Estou às gargalhadas por dentro! Encurralei-me, armei-me uma cilada, entretive o meu demente cérebro. Mas ri-me, ri-me às minhas custas!


sexta-feira, 26 de julho de 2013

Crocante por fora, saudosista por dentro


Esticados na praia, ela para ele orgulhosamente: “Vais ficar preto!”
E vai mais uma barrada de óleo Johnson. “Queres nas pernas?” “Sim, sim. “
Dispara o filho: “Põe-lhe na cara!”

Ai...isto foi há dias, século XXI, numa altura em que se olha de lado e se torce o nariz a quem apresenta um escaldão...não quero parecer moralista mas o tempo da pele de pato à l’orange não é este.

As coisas mudaram tanto em tão pouco tempo, não te parece?

(Queres ver um “eu sou do tempo em que...”?)

Eu sou do tempo em que o ar na praia cheirava a coco e não era de protetor solar. Back in the day usava-se era bronzeador. Isto servia para adultos e canalha. Aliás o protetor solar era de um fator baixíssimo, colocado já quando o povo tinha montado a barraca para proteger a feijoada do almoço do sol e já os putos estavam fartos de correr na areia. Como sou do Norte o dia de praia começava cedo geralmente enevoado e frequentemente corria aquela aragem que prepara este meu povo para qualquer temperatura de qualquer água deste planeta. Quem sobrevive às praias do Norte está apto a ser conservado em criogenia sem preparação prévia!

Quando eu era miúda morava numa aldeia. Tínhamos que dizer “Bom dia” a todos quantos com nós se cruzassem sob pena de dizerem que éramos malcriados e não tínhamos respeito. Isto implicava que um percurso de 30 metros para ir ao pão (com saquinho de pano na mão, que no meu tempo não se prejudicava o ambiente desperdiçando papel...) resultava num tormento de 15 minutos em que me parecia que a velhada se levantava toda à mesma hora que eu e ia ser uma catrefada de gente na loja que nunca mais regressava a casa...

Na loja vendia-se vinho do pipo (tinhas que levar vasilhame), leite avulso, marmelada aos cubos e no café em frente às vezes no inverno vendiam gelados. Ah pois é. Acabando o verão os cafés deixavam de vender gelados. Mas nos fins de semana à tarde, depois do almoço e antes de uma sessão de televisão com o que houvesse para ver, íamos lá buscar 2 Cornetos de chocolate e dois de morango (quase sempre), ou melhor ainda, Cornetos de whiskey! Até hoje amaldiçoo o dia em que alguém achou que era de mau tom anunciar que era de uma bebida alcoólica! Já repuseram o Fizz mas ainda ninguém se lembrou do Corneto de whiskey ou do Super Maxi de laranja (havia mais que um sabor, meninos e meninas, não era só a monótona baunilha, não era não).

Podíamos até tirar um cigarrito às escondidas mas íamos abertamente ao café comprar cigarros para o pai e ninguém pedia o BI nem as máquinas estavam bloqueadas. Não havia máquinas e nunca se tinha ouvido falar de pessoas bloqueadas...Aliás as pessoas eram tudo menos bloqueadas ou complicadas. Caías como o caraças, não te amparavam quedas, fossem físicas ou emocionais, batias com o focinho tantas vezes que os joelhos nem tinham tempo de criar crosta, literal e metaforicamente falando.

Eh pá, lá atrás não fui totalmente correta. Não éramos assim tão ecológicos. Não se reciclava e as idas ao caixote do lixo eram diárias. Faziam parte da rotina. Uns levantavam a mesa do jantar e outros levavam o lixo ao contentor (que era de metal, engraçado, nunca mais vi um). Embora, a bem da verdade, se fizessem coisas giras, rotineiras mas que agora pensando nelas eram logicamente medidas de poupança, financeira e ambiental: o lanche da manhã era embrulhado num guardanapo de pano, as pastilhas elásticas guardadas no frigorífico antes das refeições e retomadas mais tarde. Os lápis usavam-se até ao fim e havia quem afiasse as duas extremidades para não perder tempo à procura da afia que era aguça na minha terra.

Da escola para casa ia-se a pé e o snack de fim de dia era quase sempre azedas chuchadas até às aftas finais e já na primavera era a vez daquelas que nós apelidávamos de “açucenas” (mas agora que já conheço muitas flores acho que não eram) que tinham uma aguinha doce soberba. Comíamos muita coisa das árvores, a mais estranha que comi foram nozes ainda em leite, soube bem mas não vou entrar em pormenores quanto ao desfecho dessa experiência...
Aqui há atrasado (que é como quem diz antigamente) o português era um povo estranhíssimo. Não era obrigatório usar cinto de segurança, nem o condutor quanto mais a criançada! ; na escola primária as enfermeiras deslocavam-se para administrar vacinas; ainda na escola, e bem antes dos pacotinhos gratuitos de leite, a sra empregada fazia canecadas de leite com cevada para os lanches da manhã e da tarde; não sei como nunca houve nenhuma tragédia na sala de aula chegado o inverno gélido, com o aquecedor a gás da professora...já que falamos em acidentes, ainda fico pasma quando recordo que na 4ª classe pude brincar com fogo. O projeto de Natal consistia em cobrir uma lata de spray com cera derretida (!) para reproduzir uma vela decorativa para o centro de mesa. Sabendo hoje o perigo que corremos cada um com a sua lata em pressão e respetiva chama acesa a pingar confesso que agradeço a Deus o ensino público dos anos 80 – oitenta e muitos que não sou assim tão idosa!

Vamos ao momento em que o texto dá a volta e regressa ao início?

Escaldões, escaldões apanhávamos nós! E curávamos com Eucerin, e Disoderme leite ou ainda mais artesanalmente: eu e a mana sentadas na pontinha do sofá com sacos de plásticos cheios de água pousados nas pernas e braços...


Those were the days é o que tenho a dizer!

sexta-feira, 17 de maio de 2013

A mente e a linha


Às vezes surpreendo-me com as coisas que uma mulher é capaz de ensaiar em pensamento, com as lógicas distorcidas que só nós somos capazes de tecer...do nada saem verdades absolutas que, valha-me Deus...

Estou na minha vidinha e, é quase sempre enquanto se desenrolam tarefas rotineiras que dispensam concentração, que da caixa-na-qual-nascem-coisas-que-tenho-que-hífenizar salta involuntariamente  um pensamento  que até a mim me assalta de surpresa. Exemplos?... bora lá:

1 – “Devo estar a ficar mais magra. O sensor da luz do átrio demorou tanto tempo a disparar que se calhar teve dificuldade em reparar em mim! Contei, foram 3 segundos, não é habitual.”

2 – Regra gastronómica: nunca levar à boca nada que seja cinzento. Cor mais estúpida para comer.

3 – Há uma lista de palavras e expressões que abomino e me fazem cá uma destas comichões mentais...É irracional, inexplicável, mexe tanto com o meu âmago que qualquer uma delas despoleta reações físicas.  Contorço-me com salero,  arrepio-me com ponto final, parágrafo, lacrimejo se à Apple insistem em chamar Eipal, e há mais mas não quero facilitar a vida a quem quiser chatear-me a cabeça...

4 – E a fantástica habilidade feminina para inventar palavras ou conceitos que simplesmente não estão grafados no dicionário? Também padeço...terrim – é cartilagem e adoro comê-la, ui o que me pelo por aquele pedacinho branco translúcido da carcaça do frango. (A bem da verdade tenho que dividir os créditos desta com a minha parceira de infância, a mana que ainda hoje recebe a metade mais pequena do dito quando nos juntamos em casa dos pais e para o repasto calha de ser servido galináceo.)


Em suma, não é uma questão de estarmos a aparvalhar, sermos cabecinhas no ar ou estarmos a perder capacidades. As grandes ideias, invenções e teorias nascem quando a mente divaga, é o limiar da inconsciência quando mesmo antes de cairmos no sono engendramos algo tão magnífico que só mesmo a lucidez (?) do dia a dia deita por terra.  É quando a mente anda por aí sozinha que nascem os sorrisos por impulso, aqueles que nos saem em público e que envergonhadamente tentamos engolir...

Já estabeleci novas resoluções: vou deixar-me divagar mais,  vou abstrair-me mais, vou bater recordes, bem, recorde: tenho que bater o sensor. Objetivo – até ao final da próxima semana evitar deteção no átrio durante 4 segundos! E estou prontinha para o verão, magríssima...fácil e resolvido.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Pontos (e vírgulas...) de vista


Sou fã incondicional de Eça, de Allende, de Marquez, de Greene, de uma lista enorme de povo que esgrime as letras. Mas há um amor que assumo mais intenso, íntimo e insano (os 3 com “i” no início por pura coincidência, que não creio que as haja…), um deslumbramento ao ler palavras suas por serem mais que discorrimento literário, porque pede de mim que esteja concentrada em si, no enredo, na história, nas personagens, nos cenários, nos cheiros e cores que cria…Saramago!

Ausência de pontuação é um plus, defendo isto com todas as garras, argumento e discuto com quem comigo se cruzar. Bebo linha a linha, parágrafo a parágrafo, entendo, interpreto e construo.

Quem o lê tem que estar ali, deixar-se absorver…Admiro quem “elastica” morfologia, sintaxe, métrica…gosto de quem brinca com estas coisas. E hoje, hoje em dia chuvoso, apetece-me brincar cá dentro, de casa e das palavras.

Proponho 2 cenários (perdoem-me o amadorismo de uma pseudo) para um mesmo texto, palavra a palavra que pontuados, cada um de sua forma, são outra coisa completamente diferente.

Cenário 1
Uma mulher presta declarações numa esquadra. Fala com o Inspetor e termina divagando nos pensamentos evocando o objeto do seu afeto.
Que homem lindo, Sr. Inspetor!
Nunca soube o que era o amor até hoje!
Parece-me que sempre fui capaz de tudo incluindo matar…
Se tenho saudades? Tenho. Desses tempos de ingenuidade em que tudo era claro.
Agora percebo onde andava. Andava, sim andava num estado de dormência, na penumbra, não era feliz…
Agora sim, sei-o eu, matou-se o desejo. Por agora fico onde estou, contigo, presente…
Cenário 2
Um Inspetor roça o limite da sanidade mental após um acontecimento dramático. Foi presente a uma Inspetora-Chefe mas não está numa esquadra…
"- Que homem! Lindo, Sr. Inspetor! Nunca soube o que era o amor?
- Até hoje parece-me que sempre fui capaz de tudo.
- Incluindo matar-se?
- Tenho saudades, tenho…desses tempos de ingenuidade em que tudo era…
- Claro! Agora percebo onde andava…!
- Andava?!
- Andava, sim! Andava num estado de dormência, na penumbra.
- Não…
- Era feliz?
- Agora, sim…
- Sei-o eu! Matou-se! O desejo…
- Por agora fico…onde estou? Contigo?!
- Presente!"

(Nota, para que se entenda a conclusão desta história: Importa informar que o Inspetor faleceu por vontade própria, consumou portanto. Este estar “presente” é de facto já perante uma comissão de inquérito…no Purgatório.)
- Trechos Nocturne in C minor Op.48 de Chopin -