quarta-feira, 4 de junho de 2025

O cérebro não faz copy/paste

Em minha casa sempre se leu muito. 

Só havia 2 canais e a “Dois” abria tarde. (Sim, “abria”. Não havia canais sempre a dar!!! Estava ali parada aquela grelha com um círculo ao centro, linhas horizontais e verticais, quadradinhos e retangulozinhos a preto e branco e outros a cores...mira técnica, agora sei! E depois chegava àquela hora e...”abria”. Tal como se fechavam. Os canais, na hora de encerrar a emissão, lançavam a bandeira nacional ao vento e ao som do hino levantávamos o rabinho e íamos desligar o televisor. “Boa noite, até amanhã se Deus quiser...” ) 

Desenhos animados tinham horas marcadas e, ao fim-de-semana, só passavam ao sábado de manhã. Vasco Granja, my man, o fornecedor de psicadelismo infantil global. Ao domingo de manhã, o alinhamento roubava-nos a diversão e quem estivesse “a morrer, Mãe! Acho que estou doente, não me sinto nada bem…não consigo ir à Missa!”, vinha a montanha a Maomé na RTP 1. Sagradinho: TV Rural (aprendi tudo sobre o flagelo do míldio, o escaravelho da batata e técnicas de resinagem), 70X7 (um secadão que até hoje nem sei o que abordava) e a Eucaristia Dominical. Com direito a tudo menos à hóstia! 

Os meus pais haviam regressado à Pátria, vindos de Luanda, para que as filhas tivessem acesso ao ensino em Portugal e as malas que rebentavam pelas costuras vergavam sob o peso da Literatura e de pouco mais. Lá em casa lia-se bué! Ainda antes de “bué” entrar no léxico luso de uso corrente. Eram machimbombos de livros, enciclopédias, capas duras, encadernações de bolso, eram coisas sérias, coisas sexuais, românticas, ficcionais, biográficas, históricas, técnicas, autores muitíssimo consagrados, autores menos conhecidos, de todas as partes do Mundo, autores traduzidos, gente que nunca havia sequer sido publicada cá. Livros, livros, livros…em português de Portugal e do Brasil. E é aqui que a porca torce o caracol da bundinha: tínhamos acesso a tudo, quer dizer, quase tudo… Havia um grupo de livros sobre sexualidade dividido em grupos etários. A mim e à mana era-nos dado a conhecer (e bem!) cada coisa a seu tempo. Dos 6 aos 12 podíamos ficar a saber tudo sobre abelhas e passarinhos. Passarinhas, ainda pouco. Dos 13 aos 15 já havia direito aos pelos púbicos e um pirilauzito, e por aí em diante…




Os nossos pais vinham de uma mentalidade um pedação mais à frente da que se praticava em Portugal. Luanda fervilhava de la movida, últimas modas, carros e motas, Coca-cola e baleizões, Cuca e jinguba (e quando esta última era preparada com açúcar e servida com a dita cerveja, renomeava-se de “ParaCuca”, genial não é?)

Eram bem putos os nossos pais…mas tinham muita bagagem. Para eles o acesso à leitura não era sequer assunto. Os livros existem para ser lidos. A porca torce então o proverbial rabo quando a minha mãe é chamada à escola, andava eu na 2ª classe. 

A D. Rosalina estava chocada com as minhas falhas gritantes aquando da conjugação de verbos! “Se calhar é de andar a ver as telenovelas brasileiras! Tanto gerúndio, gerúndio a mais…”; andava fazendo conjugações bizarras. É, era português do Brasil mesmo. Mas não era das telenovelas. A culpa era do Jorge Amado, mas quase toda do José Mauro de Vasconcelos.


Li vários livros dele, mas claro que o que se enraizou foi “Meu Pé de Laranja Lima”. Capa fundo azul. O Zezé desenhado a traços, calções pretos, camisa branquinha e laçarote ao pescoço. O pássaro que esvoaça. Céus! Fui googlar e no retorno da lupa em Imagens, eis que essa ilustração preenche a tela na totalidade! 

Na época, li-o de uma assentada. Numa tarde. Não me lembro em concreto por que tive aquele dia livre. Recordo-me de um passeio da escola ao qual não fui, nem sei porquê. Li-o de fio a pavio. Se entendi tudo o que li? Não. Categoricamente, não. Retive só coisas lindas, aventuras, palavras novas, o arrojo das personagens, o cheiro das coisas, a imponência de um carro, que era possível uma criança ser “endiabrada”, ter “o diabo no corpo”…e o que me fascinou e retive foi o Zezé aprender tudo sozinho, até a ler! 


Li-o outra vez. Tinha tido acesso ao volume 13-16 da enciclopédia sexual. Agora, nesta 2ª leitura eu já era adolescente. Entendi mais. Entendi muito mas ainda não tudo. Ficou-me, do enredo, a força daquela mãe que arregaçava as mangas e ia tratar de vida. Um pai frustrado, bêbedo e violência. Li-o pela terceira e última vez em adulta e fiz merda. Da grossa.

Recordava-me das travessuras do Zezé, da amizade com um adulto, havia tragédia, acho que morte também. As agruras da vida adulta…memórias literárias ténues. Afinal, entre a leitora adolescente e aquela adulta, corria um rio com mais de 25 anos de largura entre margens. E havia aquele perímetro…Do meu umbigo para a direita, em todo o meu redor até ao lado esquerdo do mesmo umbigo. O raio desta circunferência trespassava uma vida ainda pequenina. A leitora adulta decidiu que era bem giro ler “O meu Pé de Laranja Lima”, grávida. É,... fiz merdinha da grossa. 

De repente caem fichas atrás de fichas: era o Zezé aos 5 anos a ser feliz e a ter uma vida estável. A ser travesso, mas astuto e engraçado. É um pai que perde o emprego, entra numa espiral de desespero, entrega-se à depressão, à bebida, à violência…Um lar que desmorona, rachas por todo o lado. Abuso e negligência infantil, é o que leio agora. Os problemas dos adultos a espezinharem um universo criativo e brilhante. Abandono. Uma árvore confidente das amarguras de um menino que ama demais, que cresce demais, que domina o quintal, que tem de ser cortada! Desbasta-se o Minguinho e com isso arranca-se o escalpe à alegria, aos sonhos, ao ser criança. “Até bem pouco tempo ninguém me batia. Mas depois descobriram as coisas e vivem dizendo que eu era o cão, que eu era capeta, gato ruço de mau pelo.”




Tudo isto quis deixar registado para memória futura porque hoje, à data, os 2 filhos que tenho têm 14 e (quase) 10 anos. Ele e ela respetivamente. 

Li para eles muito, sempre. Desde o ano 0 de cada um. Em todos os lugares: na cama (óbvio), ao ar livre, baixinho na Biblioteca, li placas de sítios, descrições nos paredes de museus, li livros de plástico, fofinhos, que boiavam na banheira!... E agora leio pontualmente porque cada um já lê para si, onde, quando e se lhe apetecer, maaaaaaaas....................há dias, a mais nova repara e nota que um livro que havia lido quando era pequenina interpretou de uma forma e agora, que releu, “viu” outras coisas. E foi quando bastou para abrir aquela caixa de Pandora. 

O cérebro é tão engraçado. Claro que nesta equação há maturidade emocional, experiência de vida e outras químicas à mistura, mas pergunto-me se não será igualmente auto-preservação. As coisas estão lá, escritas nos livros, ditas nos filmes, e se não sabemos, vamos perguntar (nem que seja à IA)

Ler e escolher perceber aquilo e mais nada será de alguma forma uma maneira que o cérebro encontra de dizer “deixa estar. Entende assim, hás de voltar aqui”? Não sei. 

A ignorância é uma bênção. Detesto este ditado. Saber é que é uma bênção! 

...mas, prefiro a versão que li antes da “Dois” abrir...

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