sexta-feira, 26 de julho de 2013

Crocante por fora saudosista por dentro


Esticados na praia, ela para ele orgulhosamente: “Vais ficar preto!”
E vai mais uma barrada de óleo Johnson. “Queres nas pernas?” “Sim, sim. “
Dispara o filho: “Põe-lhe na cara!”

Ai...isto foi há dias, século XXI, numa altura em que se olha de lado e se torce o nariz a quem apresenta um escaldão...não quero parecer moralista mas o tempo da pele de pato à l’orange não é este.

As coisas mudaram tanto em tão pouco tempo, não te parece?

(Queres ver um “eu sou do tempo em que...”?)

Eu sou do tempo em que o ar na praia cheirava a coco e não era de protetor solar. Back in the day usava-se era bronzeador. Isto servia para adultos e canalha. Aliás o protetor solar era de um fator baixíssimo, colocado já quando o povo tinha montado a barraca para proteger a feijoada do almoço do sol e já os putos estavam fartos de correr na areia. Como sou do Norte o dia de praia começava cedo geralmente enevoado e frequentemente corria aquela aragem que prepara este meu povo para qualquer temperatura de qualquer água deste planeta. Quem sobrevive às praias do Norte está apto a ser conservado em criogenia sem preparação prévia!

Quando eu era miúda morava numa aldeia. Tínhamos que dizer “Bom dia” a todos quantos com nós se cruzassem sob pena de dizerem que éramos malcriados e não tínhamos respeito. Isto implicava que um percurso de 30 metros para ir ao pão (com saquinho de pano na mão, que no meu tempo não se prejudicava o ambiente desperdiçando papel...) resultava num tormento de 15 minutos em que me parecia que a velhada se levantava toda à mesma hora que eu e ia ser uma catrefada de gente na loja que nunca mais regressava a casa...

Na loja vendia-se vinho do pipo (tinhas que levar vasilhame), leite avulso, marmelada aos cubos e no café em frente às vezes no inverno vendiam gelados. Ah pois é. Acabando o verão os cafés deixavam de vender gelados. Mas nos fins de semana à tarde, depois do almoço e antes de uma sessão de televisão com o que houvesse para ver, íamos lá buscar 2 Cornetos de chocolate e dois de morango (quase sempre), ou melhor ainda, Cornetos de whiskey! Até hoje amaldiçoo o dia em que alguém achou que era de mau tom anunciar que era de uma bebida alcoólica! Já repuseram o Fizz mas ainda ninguém se lembrou do Corneto de whiskey ou do Super Maxi de laranja (havia mais que um sabor, meninos e meninas, não era só a monótona baunilha, não era não).

Podíamos até tirar um cigarrito às escondidas mas íamos abertamente ao café comprar cigarros para o pai e ninguém pedia o BI nem as máquinas estavam bloqueadas. Não havia máquinas e nunca se tinha ouvido falar de pessoas bloqueadas...Aliás as pessoas eram tudo menos bloqueadas ou complicadas. Caías como o caraças, não te amparavam quedas, fossem físicas ou emocionais, batias com o focinho tantas vezes que os joelhos nem tinham tempo de criar crosta, literal e metaforicamente falando.

Eh pá, lá atrás não fui totalmente correta. Não éramos assim tão ecológicos. Não se reciclava e as idas ao caixote do lixo eram diárias. Faziam parte da rotina. Uns levantavam a mesa do jantar e outros levavam o lixo ao contentor (que era de metal, engraçado, nunca mais vi um). Embora, a bem da verdade, se fizessem coisas giras, rotineiras mas que agora pensando nelas eram logicamente medidas de poupança, financeira e ambiental: o lanche da manhã era embrulhado num guardanapo de pano, as pastilhas elásticas guardadas no frigorífico antes das refeições e retomadas mais tarde. Os lápis usavam-se até ao fim e havia quem afiasse as duas extremidades para não perder tempo à procura da afia que era aguça na minha terra.

Da escola para casa ia-se a pé e o snack de fim de dia era quase sempre azedas chuchadas até às aftas finais e já na primavera era a vez daquelas que nós apelidávamos de “açucenas” (mas agora que já conheço muitas flores acho que não eram) que tinham uma aguinha doce soberba. Comíamos muita coisa das árvores, a mais estranha que comi foram nozes ainda em leite, soube bem mas não vou entrar em pormenores quanto ao desfecho dessa experiência...
Aqui há atrasado (que é como quem diz antigamente) o português era um povo estranhíssimo. Não era obrigatório usar cinto de segurança, nem o condutor quanto mais a criançada! ; na escola primária as enfermeiras deslocavam-se para administrar vacinas; ainda na escola, e bem antes dos pacotinhos gratuitos de leite, a sra empregada fazia canecadas de leite com cevada para os lanches da manhã e da tarde; não sei como nunca houve nenhuma tragédia na sala de aula chegado o inverno gélido, com o aquecedor a gás da professora...já que falamos em acidentes, ainda fico pasma quando recordo que na 4ª classe pude brincar com fogo. O projeto de Natal consistia em cobrir uma lata de spray com cera derretida (!) para reproduzir uma vela decorativa para o centro de mesa. Sabendo hoje o perigo que corremos cada um com a sua lata em pressão e respetiva chama acesa a pingar confesso que agradeço a Deus o ensino público dos anos 80 – oitenta e muitos que não sou assim tão idosa!

Vamos ao momento em que o texto dá a volta e regressa ao início?

Escaldões, escaldões apanhávamos nós! E curávamos com Eucerin, e Disoderme leite ou ainda mais artesanalmente: eu e a mana sentadas na pontinha do sofá com sacos de plásticos cheios de água pousados nas pernas e braços...


Those were the days é o que tenho a dizer!

sexta-feira, 17 de maio de 2013

A mente e a linha


Às vezes surpreendo-me com as coisas que uma mulher é capaz de ensaiar em pensamento, com as lógicas distorcidas que só nós somos capazes de tecer...do nada saem verdades absolutas que, valha-me Deus...

Estou na minha vidinha e, é quase sempre enquanto se desenrolam tarefas rotineiras que dispensam concentração, que da caixa-na-qual-nascem-coisas-que-tenho-que-hífenizar salta involuntariamente  um pensamento  que até a mim me assalta de surpresa. Exemplos?... bora lá:

1 – “Devo estar a ficar mais magra. O sensor da luz do átrio demorou tanto tempo a disparar que se calhar teve dificuldade em reparar em mim! Contei, foram 3 segundos, não é habitual.”

2 – Regra gastronómica: nunca levar à boca nada que seja cinzento. Cor mais estúpida para comer.

3 – Há uma lista de palavras e expressões que abomino e me fazem cá uma destas comichões mentais...É irracional, inexplicável, mexe tanto com o meu âmago que qualquer uma delas despoleta reações físicas.  Contorço-me com salero,  arrepio-me com ponto final, parágrafo, lacrimejo se à Apple insistem em chamar Eipal, e há mais mas não quero facilitar a vida a quem quiser chatear-me a cabeça...

4 – E a fantástica habilidade feminina para inventar palavras ou conceitos que simplesmente não estão grafados no dicionário? Também padeço...terrim – é cartilagem e adoro comê-la, ui o que me pelo por aquele pedacinho branco translúcido da carcaça do frango. (A bem da verdade tenho que dividir os créditos desta com a minha parceira de infância, a mana que ainda hoje recebe a metade mais pequena do dito quando nos juntamos em casa dos pais e para o repasto calha de ser servido galináceo.)


Em suma, não é uma questão de estarmos a aparvalhar, sermos cabecinhas no ar ou estarmos a perder capacidades. As grandes ideias, invenções e teorias nascem quando a mente divaga, é o limiar da inconsciência quando mesmo antes de cairmos no sono engendramos algo tão magnífico que só mesmo a lucidez (?) do dia a dia deita por terra.  É quando a mente anda por aí sozinha que nascem os sorrisos por impulso, aqueles que nos saem em público e que envergonhadamente tentamos engolir...

Já estabeleci novas resoluções: vou deixar-me divagar mais,  vou abstrair-me mais, vou bater recordes, bem, recorde: tenho que bater o sensor. Objetivo – até ao final da próxima semana evitar deteção no átrio durante 4 segundos! E estou prontinha para o verão, magríssima...fácil e resolvido.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Pontos (e vírgulas...) de vista


Sou fã incondicional de Eça, de Allende, de Marquez, de Greene, de uma lista enorme de povo que esgrime as letras. Mas há um amor que assumo mais intenso, íntimo e insano (os 3 com “i” no início por pura coincidência, que não creio que as haja…), um deslumbramento ao ler palavras suas por serem mais que discorrimento literário, porque pede de mim que esteja concentrada em si, no enredo, na história, nas personagens, nos cenários, nos cheiros e cores que cria…Saramago!

Ausência de pontuação é um plus, defendo isto com todas as garras, argumento e discuto com quem comigo se cruzar. Bebo linha a linha, parágrafo a parágrafo, entendo, interpreto e construo.

Quem o lê tem que estar ali, deixar-se absorver…Admiro quem “elastica” morfologia, sintaxe, métrica…gosto de quem brinca com estas coisas. E hoje, hoje em dia chuvoso, apetece-me brincar cá dentro, de casa e das palavras.

Proponho 2 cenários (perdoem-me o amadorismo de uma pseudo) para um mesmo texto, palavra a palavra que pontuados, cada um de sua forma, são outra coisa completamente diferente.

Cenário 1
Uma mulher presta declarações numa esquadra. Fala com o Inspetor e termina divagando nos pensamentos evocando o objeto do seu afeto.
Que homem lindo, Sr. Inspetor!
Nunca soube o que era o amor até hoje!
Parece-me que sempre fui capaz de tudo incluindo matar…
Se tenho saudades? Tenho. Desses tempos de ingenuidade em que tudo era claro.
Agora percebo onde andava. Andava, sim andava num estado de dormência, na penumbra, não era feliz…
Agora sim, sei-o eu, matou-se o desejo. Por agora fico onde estou, contigo, presente…
Cenário 2
Um Inspetor roça o limite da sanidade mental após um acontecimento dramático. Foi presente a uma Inspetora-Chefe mas não está numa esquadra…
"- Que homem! Lindo, Sr. Inspetor! Nunca soube o que era o amor?
- Até hoje parece-me que sempre fui capaz de tudo.
- Incluindo matar-se?
- Tenho saudades, tenho…desses tempos de ingenuidade em que tudo era…
- Claro! Agora percebo onde andava…!
- Andava?!
- Andava, sim! Andava num estado de dormência, na penumbra.
- Não…
- Era feliz?
- Agora, sim…
- Sei-o eu! Matou-se! O desejo…
- Por agora fico…onde estou? Contigo?!
- Presente!"

(Nota, para que se entenda a conclusão desta história: Importa informar que o Inspetor faleceu por vontade própria, consumou portanto. Este estar “presente” é de facto já perante uma comissão de inquérito…no Purgatório.)
- Trechos Nocturne in C minor Op.48 de Chopin -