A questão nem era saber como raio tinha chegado até ali, o
que precisava mesmo de saber era como ia sair daquele pardieiro…
Acordar nessa manhã não tinha sido tarefa fácil, a noitada
patrocinada pela bolada que tinha recebido da última “entrega” ainda pulsava
nas têmporas e o cliché do papel de música nas papilas era bem real. “Já estou
a ficar velho para isto” – velho para as noitadas ou para as “entregas”? Velho, velho mesmo. Jurou que aqueles haviam
sido os últimos excessos e ali e naquele momento se comprometia a mudar de
rumo.
Da pilha de roupa amontoada atrás da porta tira aleatoriamente
um dos pares de calças creme, cinto castanho e sapatos de igual tom. As
camisas, essas, eram a imagem de marca e a única peça que se dava ao trabalho
de mandar engomar fora. O vinco que acompanha o punho até à costura do ombro
tinha que estar perfeitamente alinhado. Nisso era rigoroso e exigente, afinal
era da cintura para cima que o conheciam…
Não possui meio de transporte, não tem leque de contactos
que permitam carpooling, se o direito
à greve assim o permitir opta pelo transporte do proletariado, aliás não tem a
pretensão de ser mais que isso: um mero operário, não fabril mas quase sempre
febril…estava a ficar velho…
A fachada de gestor de conta era, no mínimo enfadonha.
Obrigava a manobras de interação social que só lhe provocavam sensações
biliosas. “E o nosso Benfica este fim de semana? Sabes a gaja do Antunes? Encornou-o!
Não sei o que fazer com o puto, agora quer-me pôr brincos no meio do nariz!”
Mas esta gente não sabe que ninguém quer saber disto? O que me interessam a mim
os orifícios da canalha, as atividades extraconjugais e o esférico rolando
sobre a relva?
“Tem 1 mensagem nova” – vamos a isso, este vai ser o último,
fecho portas depois disto. Estou a ficar velho…
“No armazém do costume, daqui a 20 minutos, leva cabo de
rede e não te atrases! Se queres fazer deste o último, não te atrases.”
Ó Antunes, estou de saída. Hoje já não devo voltar, até
amanhã…
No armazém, frente ao pc, um cheiro a peixe que nem o mais
forte dos desinfetantes disfarça. Cheira a contentor. A luz que treme e ilumina
parcamente vem do ecrã, o cursor que pisca, blinc, blinc, blinc – chamada em
conferência, a câmara dispara e lá está ele, da cintura para cima,
profissionalmente alinhado e vincado. Num mandarim irrepreensível completa os
cumprimentos e considerações sociais da praxe. Sim, agora acordava a derradeira
“entrega”, combinado o voo para a China e o rendez
vous, partiria naquele mesmo momento.
Tudo naquela vida miserável o tinha encaminhado para aquele
preciso lugar, deitado de costas numa marquesa, manietado, amordaçado, stripped da sua camisa favorita, sem
vincos nem alinhamentos, nu…da cintura para cima. Só agora tomava consciência
das próteses que tão bem sabia esconder e às quais nunca tivera problemas em adaptar-se:
o braço esquerdo desde o cotovelo, a orelha esquerda, a perna também esquerda
desde o joelho…sempre o lado esquerdo, curioso…ou talvez não…e agora “entregava”
o resto. Na altura, dados os poucos motivos que tinha para viver sempre lhe
parecera boa ideia: a net está cheia de marados que pagam rios dele para provar
carne humana. Estou velho, minado, exageros e imprudências, o Big C tinha-lhe dado a coragem que nem
era coragem era cobardia de desistente. Mas agora…agora crescia qualquer coisa
que nem era medo, nem cobardia…era o conceito de ser velho que de repente tinha algo de apelativo e via-se a curtir
o resto do tempo, fosse ele qual fosse, melhor ou pior, a afagar uns corpitos juvenis
e a emborcar uns copitos num lugar quente qualquer…mojitos…nunca provou mas
sabe que ia gostar.
A morfina a fazer efeito, uma trip que sempre gostou mas que agora…agora queria combater, a
adrenalina é um neurotransmissor poderoso mas não está a resultar.
“Vamos a isso, campeão? – a voz e passos distantes a
aproximarem-se. As formalidades foram cumpridas e o acordo lavrado e assinado.
Não tinha escape nem ausência de culpa nisto tudo. Mas estava velho, poderia
alegar insanidade etária? Arrependido era o que estava. E não podia fazer nada.
Que desperdício…
(Centrado, a Bold, letras garrafais)
CANIBAL DA ANTUÉRPIA
APANHADO NA CHINA
Homem foi detido em
Guangdong, província chinesa. Vítimas acediam ser parcialmente devoradas.
Polícia encontrou dezenas de contratos que aparentam ser válidos. A última
vítima não estava a ser amputada mas sim devorada na totalidade. Criminoso
passa de canibal a homicida.
Não, não estava
velho…estava morto. Que desperdício…